Patrícia ainda de olhos fechados sentia um corpo quente abraçado ao dela. Estavam abraçados com as pernas entrelaçadas. Patrícia pensou que fazia um bom tempo que não dormia tão bem, e não acordava abraçada a um homem. Começou a acariciar levemente com as unhas aquelas largas costas descendo até a cintura e subindo pela barriga até o peito. Sentia o meio de suas pernas ficarem levemente úmidas. Que saudade de acordar assim, pensou. Com uma mão parada sobre o peito quente do homem, começou a descer a outra que estava embaixo de seu travesseiro pelo seu pescoço, correndo pelos peitos, barriga até o meio das pernas sobre a calça. Deu um leve suspiro e abriu os olhos. Quando percebeu que o corpo que estava acariciando era o de Gabriel, lembrou de toda a noite anterior e não conseguiu segurar o grito de susto, fazendo-o arregalar os olhos. Nisso, ambos gritaram e ela o empurrou da cama fazendo-o rolar e cair no chão.
- GABRIEL! DESCULPE! – disse ela colocando às mãos sobre a boca.
Gabriel ficou em pé ainda meio desnorteado.
- O QUE É ISSO? O que aconteceu? O que tu está fazendo aqui?
Patrícia correu os olhos para abaixo da cintura dele e ele olhou o volume que estava levantando a cueca. Era a circunstância dos carinhos dela com a unha. Gabriel prontamente olhou para baixo e cobriu o volume com as mãos.
- Enfim Patrícia – disse ele calmamente – pode-me dizer como chegamos a essa situação?
Ela contou tudo que havia acontecido e ele a ouviu com atenção, e com as mãos ainda entre as pernas disse:
- Bom. Eu me lembro só de alguns detalhes, sendo assim, vamos trabalhar que ganhamos mais.
- Você não prefere tirar o resto do dia de folga para se recuperar? – disse ela preocupada.
- Paty. Vou te dizer sinceramente. Se eu ficar em casa, pensando nessas merdas, há uma grande possibilidade de isso acontecer novamente. Então pode-me deixar ir trabalhar?
Ela olhou para ele com um olhar doce.
- Tudo bem. Vamos lá então, te dou uma carona.
Patrícia ficou sentada na cama tranquilamente olhando para os lados. E ele esperando que ela se retirasse do quarto para ele ficar a vontade.
- Bom se você não se importa, eu vou para o banho. – ele tirou a cueca, jogou no colo dela e passou por ela nu em direção ao banheiro.
Ela levantou da cama envergonhada e seguiu em direção a cozinha. Sentou-se a mesa e começou a refletir e rir sobre a cena que havia acontecido instantes atrás. Levantou para servir-se de café e olhou para o relógio. Eram dez e meia da manhã. Ouviu Gabriel gritar do chuveiro.
- Podia fazer o enorme favor de me servir um café né Paty?
Ele saiu do banho, arrumou-se e foi para a cozinha. O café estava servido a mesa e ela sentada com as pernas cruzadas com uma xícara nas mãos. Era uma cena que lhe trazia muitas lembranças. Por mais que fosse um ato simples, fazia muito tempo que ele não tinha uma companhia feminina à mesa na hora do café. Ele olhou para o relógio e virou-se para ela dizendo:
- Acho que estamos atrasados não é?
- Ninguém vai morrer por isso – disse ela em um tom seco.
- Não se importa de chegar junto comigo no jornal? Aquela mulherada pode fazer comentários maldosos.
- Se você está falando da Marina, ela pode até ficar com ciúmes. Não sei até que ponto vocês se relacionam. – disse ela de uma forma sarcástica.
- Ai amor, não se preocupa com isso. Não foi nada mais que uma noite. – disse ele sorrindo.
- Então você devia ter avisado ela, porque o bilhete deixado no seu teclado desmente isso.
- Hum. Mas isso é um ligeiro detalhe. Você sabe bem como é.
- Sim Biel, eu sei. Mas não esquece que lá não é a faculdade. Por mais que com o seu charminho você consiga comer todas e ainda fazê-las serem amigas, isso sempre acaba em rolo.
- Esta bem amor, então vamos trabalhar que ganhamos mais.
Eles levantaram-se e saíram.
Chegaram às onze horas da manhã ao jornal e todos os olhos seguiram seus passos. Principalmente os azuis de Marina. Era uma loira de um metro e 60 de altura, com um corpo mediano e definido. Ninguém que observava o atraente colega chegar as onze da manhã acompanhado da chefe, entendia o que estava acontecendo, e isso provavelmente gerou enormes especulações.
Perto das seis da tarde, Gabriel estava preparando-se para ir embora e chegou um boy com um envelope para ele. Ele o recebeu e prontamente soube o que poderia ser. Era um envelope todo trabalhado que devia ter sido muito caro. Ele sabia o que era. Abriu e confirmou o seu pensamento. Era o convite para o aniversário do pai no clube de campo de Santa Fé neste mesmo dia, às 20 horas. Clube que o pai freqüentava com seus amigos, aqueles que faziam de conta gostar dele pela influência financeira e política que ele tinha. Influência comprada. Gabriel sabia que havia recebido o convite somente por respeito. E sabia que quem tinha lhe enviado devia ter sido o irmão, pois o pai não fazia a mínima questão que ele fosse, e muito menos esperava que ele aparecesse. Esse era um bom motivo que faria Gabriel ir. A mágoa de Gabriel pelo pai era maior do que qualquer orgulho, e teria prazer de aproveitar a oportunidade de fazê-lo sentir incomodado perante os seus amigos. O ultimo aniversário do pai que ele havia comparecido fazia seis anos, e foi somente em respeito à mãe que já estava doente. Sentiu a pior sensação que um filho podia ter: o desprezo e a vergonha que o pai demonstrava ter dele e da esposa. Gabriel não gostava de usar terno, e para o pai, o fato de ele ter ido ao seu aniversário, na frente de seus amigos de tênis, jeans e uma camiseta, era inconcebível.
Olhou para o relógio, eram seis horas. Olhou para o convite, e com um sorriso maldoso, levantou e saiu.
Dirigindo seu Opala para o sul da cidade, pensou em fazer uma parada no beco que havia atrás do ItalyPub. Era um bom momento para comprar algo que lhe deixasse mais animado. Na entrada do beco haviam umas crianças brincando que pararam para que o carro dele passasse. Ao estacionar o carro um homem saiu de uma casa abandonada que havia ali há muitos anos. Era uma casa grande e depredada pelo tempo. Ficava entre dois edifícios residenciais grandes de classe baixa e há alguns anos vinha sendo usada pelos traficantes e usuários. Seu carro já era conhecido no local. Gabriel desceu e foi em direção ao homem. Era um latino alto e forte, com uma expressão séria que sempre deixava Gabriel com um certo medo. O homem aproximou-se e disse:
- E aí mestre. O que manda hoje?
Gabriel deu uma olhadela rápida para os lados. O beco era escuro, as lâmpadas dos postes haviam sido quebradas pelos próprios traficantes e o homem havia parado encostado na mureta que cercava a frente do casarão.
- Me consegue duas loiras e 3 morenas, que à noite de hoje vai ser estressante – Entregou o dinheiro para o homem e pegou os pequenos pacotes - Posso dar um tapa aqui mesmo?
- Claro mestre, entra aqui, só pra sair da vista das crianças.
Eles entraram na casa e Gabriel usou uma mesa antiga que ficava encostada perto da porta. Pegou um cartão de crédito, abriu um dos pacotes sobre a carteira, e formou duas linhas. Lambeu o cartão, enrolou uma nota de 20 que puxou do bolso e cheirou uma linha com cada narina. Levantou a cabeça, deu umas fungadas e colocou a carteira no bolso. Piscou para o homem e saiu pela porta. Entrou no carro e seguiu novamente para o sul. Começou a chover e seus olhos piscavam rápido. Parou em um posto de gasolina e comprou uma garrafa de cerveja. Encostou-se no carro, observando a chuva e bebendo. Quando terminou a cerveja a chuva estava mais forte. Entrou novamente no carro e saiu.
Estava pronto para a guerra. A guerra fria e silenciosa que estaria por vir. Entrou no portão do clube, e estacionou o carro de ré quase em frente à porta de entrada do salão. O som do motor do Opala ofuscou o som que os músicos tiravam de seus instrumentos e todos olharam para a porta. Gabriel parou na porta, apagou o cigarro em um vaso de flores e entrou. Ele estava vestido com a mesma roupa que fora trabalhar, jeans, tênis e camiseta. No caminho até chegar até o pai, parou um garçom e pegou um copo de uísque. O pai o olhava com desaprovação. Tinha 65 anos demonstrados em seus cabelos grisalhos, a gordura que a academia não conseguia conter e a altura típica da família. Gabriel olhava-o fixamente com sarcasmo e o pai lhe retribuía o olhar com desprezo. Chegou abraçando o velho e falando em seu ouvido:
- Parabéns papai – o cinismo em suas palavras era absurdo.
- Podia pelo menos ter colocado um terno. Você não aprende mesmo, adora fazer-me passar vergonha – disse com voz grave e baixa próximo do ouvido do filho.
- Nossa. Você sempre consegue me surpreender. Como consegue ser tão otário?
O pai afastou o filho de seus braços e sorrindo deu dois tapinhas de leve no rosto, sabendo que Gabriel detestava essa atitude. Todos os próximos à família sabiam que era encenação aquele momento. Mas os amigos políticos e alguns outros convidados não conheciam nada sobre os problemas que os dois tinham. Gabriel olhou para os lados e viu alguns amigos seus de colégio, filhos de amigos do pai. Cumprimentou os velhos amigos que não falava havia tempo, todos de terno, olhou em volta todos bem arrumados e sentiu-se feliz.
Gabriel estranhou o respeito que os amigos e os pais dos amigos, prestaram a ele pelos artigos políticos que escrevera quando trabalhou na capital. Gabriel era uma pessoa simpática. Conquistava as pessoas com facilidade, conseguia circular tanto pelos mundos mais baixos como o de um traficante, como o mundo da alta classe dos seus antigos colegas. Logo, havia umas vinte pessoas em torno dele sentados ouvindo-o contar histórias de suas entrevistas com celebridades. Era o tipo de pessoa que não dominava todos os assuntos, mas era atencioso aos assuntos, o que o fazia argumentar. Passado um tempo, até o prefeito já estava sentado ao redor dele, rindo e brincando como se fossem velhos amigos. O pai deixou de ser o centro das atenções e Junior sentiu-se incomodado por Gabriel estragar o momento do pai.
Essa era à base da guerra fria que havia desde sempre entre os dois. Os conflitos começaram com a atenção da mãe. A mãe parecia ser mais atenciosa aos filhos, em especial ao mais velho, do que com o marido. E isso o pai deles não podia conceber. O irmão sentia que a mãe gostava mais de Gabriel, mas na realidade ela tentava dar-lhe o carinho que o pai não dava, por ele não ser submisso as suas vontades como o caçula. E assim criou-se essa situação complexa que rondava a relação deles.
Junior encheu-se do que acontecia e intrometeu-se na conversa de Gabriel:
- Biel, vamos ali na outra sala que precisamos conversar – disse de uma forma que não parecesse hostil.
- Claro Maninho, vamos sim. Os senhores me dêem licença – virou-se para o prefeito – E prefeito, um enorme prazer conhecê-lo. – disse apertando-lhe a mão enquanto eram fotografados.
Gabriel falou virando um copo de uísque, o décimo da noite:
- Obrigado pela atenção de todos e até uma próxima oportunidade, que agora vou ser posto para fora da festa de meu pai. E o pior de tudo, pelo próprio irmão.
Todos fizeram silêncio e o irmão levou-o pelo braço sorrindo aos convidados. Junior o levou até uma sala reservada e disse:
- Como sempre você tem que deixar o pai chateado. Não notou que as pessoas só estavam ali porque você estava bêbado?
- Acho meio estranho que trinta pessoas se reúnam para conversar com um bêbado. – disse ele sarcasticamente.
- Porra é o aniversário dele. Você sempre tem que ser o centro das atenções?
Gabriel não disse nada e olhou para o irmão com uma cara de cansado. Acendeu um cigarro e ficou ali sentado em um luxuoso sofá. Olhou para o irmão em pé na sua frente e disse:
- Sabe o que me dá raiva? Vocês me tratam como se eu fosse um imbecil. Um coitado que sempre faz tudo errado. Então, querem-me encher o saco quando eu consigo fazer o que vocês nunca conseguiram, nenhum dos dois, que é conquistar as pessoas. Sem precisar de dinheiro, influência ou de status. Pelo simples fato de ser eu mesmo. Que pena de vocês, é isso que eu tenho.
Quando terminou a frase ouviu a voz grossa no pai entrando na sala, como se estivesse ouvindo os dois pela porta entreaberta.
- Pena que você pense isso de mim Gabriel – disse o pai parado na porta olhando para o filho com um olhar triste, coisa que ele nunca tinha visto.
Gabriel ficou meio espantado com o triste olhar do pai e sentiu que alguma coisa soava diferente em suas palavras, parecia haver algum sentimento ali. Tomou em um gole só o restante do uisque no copo e disse:
- Bom. Passou da hora de eu ir embora. Essa festa já deu tudo que tinha que dar – disse caminhando em direção a porta.
Atravessou o salão despedindo-se das pessoas que lhe deram atenção e abanou para os desconhecidos. Saiu pela porta, entrou em seu Opala preto e foi embora.
Estacionou o carro em frente ao edifício onde morava, olhou para o topo do prédio e saiu caminhando pela rua. Não queria ir para casa. Estava cansado, mas com a cabeça cheia. Tinha presenciado aquela expressão do pai que nunca em toda a sua vida havia visto. Começou a chover levemente. Ele caminhou umas duas quadras e voltou para o apartamento sem resposta alguma. Subiu, serviu-se de vodca com limão e gelo, acendeu um Marlboro e sentou-se numa cadeira de praia na sacada para ver a chuva cair sobre aquela escura noite de Santa Fé.
Gabriel estava trabalhando tranqüilamente umas duas semanas desde que tinha conhecido o prefeito de Santa Fé. Patrícia aproximou-se da mesa dele e de Felipe e pediu que se aproximassem.
- Garotos, temos um enorme problema.
Ambos olhara pra ela pensando o que poderia ser. Felipe mais preocupado e interessado e Gabriel sem o mínimo interesse.
- Fala meu anjo, qual é o enorme problema? – disse Gabriel sarcástico.
- Gabriel é sério. Temos uma bomba nas mãos. Temos uma reportagem com informações que ninguém mais tem. Mas quem a escreveu esta com medo de sofrer represálias.
- Está bem, mas quem escreveu? E que informações bombásticas são essas? – disse Felipe sério.
- Não podia dizer, mas vou confiar em vocês. Foi a Marina. Ela estava trabalhando nisso a meses atrás. Começou como uma reportagem sobre uma obra superfaturada em uma escola e a coisa tomou uma proporção enorme. Ela descobriu desvios exorbitantes, de milhões de reais, para a conta dos filhos do prefeito e vice. E nesse rolo todo, ela descobriu um processo que corre na justiça em segredo, de que o prefeito seria acusado pelo assassinato de uma garota de programa. E existem provas de tudo, isso é o pior. Não vamos publicar nada sobre o processo de assassinato, mas devemos publicar sobre os desvios de verba. E ela está com medo, pois já andou recebendo algumas ligações estranhas. E... – Gabriel não deixou ela terminar a frase e disse.
- Pode colocar o meu nome. Eu peito essa. Conheço o prefeito e ele contra mim não poderá fazer nada. Daria muito na cara. Pode deixar pra mim.
- Sem problemas mesmo? – ele acenou prontamente com a cabeça e ela prosseguiu - então está bem, vou colocar o seu nome. Mas você sabe que isso vai dar um bafafá desastroso não é?
- Linda, nada pode ser pior do que aquele artigo que eu chamei os políticos da Capital de porcos – disse Gabriel com uma gargalhada.
- Certo então, vou cuidar para que seja publicado amanhã – disse Patrícia levantando e caminhando em direção a sua mesa.
Ela passou pela mesa de Marina e fez-lhe um sinal de positivo. Marina prontamente olhou para Gabriel e com um sorriso doce acenou com a cabeça.
Gabriel havia ficado até mais tarde editando o texto de Marina para ficar mais a sua cara. Próximo das oito da noite o telefone tocou. Era seu irmão.
- Gabriel? – disse Junior com uma voz meio sufocada.
- Sim Junior, o que quer?
- Preciso te contar uma coisa. Vou ser bem direto. O pai estava no escritório e sofreu uma parada cardíaca. E como até sua secretaria já havia ido embora, o socorro demorou a chegar e ele faleceu – Junior fez uma pausa afastando o fone para não demonstrar seu sofrimento ao irmão.
- Mas como assim Junior, o velho era um touro de tão forte – disse Gabriel com uma voz calma e debilitada.
- Estou no hospital. O médico disse que ele a mais ou menos um ano estava com sérios problemas de coração, e ele fez questão que ninguém soubesse, você sabe bem como é.
- Sim ele queria esconder as coisas como você esta escondendo as lágrimas que estão escorrendo.
O irmão não conseguiu conter o pranto e desabou a chorar ao telefone. Gabriel lembrou de quando o irmão o ligou para contar que sua mãe estava doente. Junior chorando compulsivamente disse ao irmão em forma de suplico:
- Por favor Gabriel, venha pra cá, eu não consigo fazer isso sozinho. Estou no hospital Santa Luzia.
- Chego aí em dez minutos, me espere na portaria – e desligou.
Enquanto dirigia até o Hospital, Gabriel tentava engolir a história do falecimento do pai. Afinal, por mais que não gostasse dele, ele era seu pai e esse laço não é fácil de ser cortado. Pensava que de uma certa forma, o pai parecia-lhe um ser com um poder tremendo, então como podia ter morrido, ele era quase imortal. Sentia um buraco dentro de si um buraco frio. Sentia que havia perdido a metade que mantinha equilíbrio ao seu mundo. A guerra entre os dois era a única coisa que os aproximava, e como ficaria agora. Tudo tinha acabado, mas não havia um vencedor, apenas um lado havia se retirado, causando dor ao outro. Por mais que as lágrimas não corressem, isso pela frieza que ele havia adquirido após a morte da esposa, ele se sentia mal, e não podia negar que estava triste.
Chegou ao hospital e o irmão abraçou-o chorando. O irmão não tinha condições de fazer nada. Estava totalmente fora de si. Gabriel teve de tomar as rédias da situação. Assinou todos os papéis do hospital, ligou para a funerária, arranjou tudo. Sua frieza natural ajudou no processo. Mantinha-se calmo e calculista. Acertou tudo durante a madrugada e pela manhã estava tudo acertado. Havia ligado para o jornal solicitado que publicassem uma nota sobre o falecimento e para Patrícia avisando-a sobre o acontecido. Eram dez horas da manhã, o velório estava cheio e Gabriel ainda estava em pé, firme.
Por ter passado o dia todo em função do velório e do enterro, não teve notícias da proporção que tomou a publicação da matéria. Todos os jornais do estado e os mais importantes do país estavam comentando sobre o desvio de verba do prefeito de Santa Fé. O prefeito não havia se pronunciado sobre o acontecido, somente declarado por escrito nada ter a falar sobre o assunto. Gabriel quando chegou em casa depois do enterro, já passava da meia noite. Olhou seu telefone e haviam mais de cem chamadas não atendidas. Deixou o telefone do lado da cama e dormiu.
Gabriel acordou ouvindo o despertador de Felipe, estava com o estômago vazio, lembrou que não havia comido nada na noite anterior. Levantou-se, foi ao banheiro e seguiu para a cozinha. Foi até a geladeira e Felipe disse:
- E aí como você está?
- Simplesmente estou. Cansado, com fome e meio abatido.
Não disseram mais nada até a campainha tocar. Felipe foi atender e era o irmão de Gabriel. Disse que ele entrasse e o levou até a cozinha onde Gabriel terminava seu café. Junior entrou e disse:
- Bom dia Gabriel. Desculpe incomodar. Sei que você deve estar cansado, mas temos coisas importantes para resolver, e sei que você deve estar querendo se livrar de tudo isso.
Gabriel percebeu uma sinceridade incomum no irmão.
- Tudo bem Junior. Qual o problema? – disse ele de forma tranqüila.
- Bom. Você sabe que todos os bens do velho serão divididos entre nós dois. E isso inclui as ações da empresa, a casa, os carros e os outros imóveis. E... – Gabriel se intrometeu.
- Junior, vamos resolver isso facilmente. As ações são o principal objeto que devemos conversar. São um bom investimento e eu não vou vendê-las, mas deixo-as em suas mãos para que você administre e para manter você na presidência. – Junior acenou com a cabeça em forma de agradecimento – O restante, podemos vender e dividir o dinheiro. Simples assim.
- Era o que eu pensava também. Então estamos acertados. Precisamos ir ao advogado para assinar os papéis e acertar a burocracia toda.
- Por mim podemos ir agora mesmo – disse Gabriel.
- Bom vamos então, aí já resolvemos isso.
Alem da cortesia deles, ainda havia aquele ressentimento e rancor. Cada um tinha seus motivos e ambos não esqueciam. Isso que mantinha a frieza entre os dois.
Foram em carros separados até o advogado do pai. O escritório era no maior e mais luxuoso edifício de Santa Fé. Eles foram tratados como reis. Aguardaram alguns minutos na recepção da sala em luxuosos sofás e logo foram chamados. A porta abriu-se e o próprio advogado veio recebê-los. Era um homem alto e magro, com cabelos grisalhos e uma envelhecida pele clara. Claramente era bem sucedido devido a classe e ao terno que usava. Foi na direção deles dizendo:
- Meninos – deu um abraço em cada um – é um prazer vê-los. Sou Francisco Montana. Meus pêsames novamente. – ele havia ido ao velório – Sou advogado da família de vocês desde antes de vocês nascerem. Vamos comigo entre e sentem-se enquanto solicito um café com biscoitos.
Enquanto eles entravam no enorme escritório eles ouviram Montana dizer à secretária que trouxesse café com biscoitos e que não queria ser incomodado pelas próximas duas horas pelo menos. Ele fechou as duas portas grandes de seu escritório e sentou-se na enorme cadeira a frente deles.
- Garotos, o seu pai fez o testamento dele pouco depois que a mãe de vocês faleceu. O testamento ele solicitou que eu fizesse padrão. Todos os bens foram divididos aos dois. Mas ele deixou umas coisas que queria que eu lhes mostrasse somente após a sua morte. Uma delas são estas caixas com seus nomes, e a outra foi uma carta escrita por ele de próprio punho que ele queria que eu lesse para vocês neste momento.
Ambos olhavam para Montana com muita atenção e pensavam no quê poderia ter dentro das caixas. O advogado começou a recitar a carta em voz alta:
“Aos meus amados filhos Gabriel e Junior:
Passei a vida toda trabalhando para dar-lhes sempre o melhor possível, espelhando-me sempre em tudo que não pude ter. E hoje percebo o quanto fui infeliz nisso. O tempo passou tão rápido que não os vi crescer. Trabalhava tanto que perdi as oportunidades de compartilhar com vocês suas vitórias, suas conquistas e até suas derrotas. Sei que fui ausente. E isso criou essa rivalidade entre vocês e quando percebi o meu erro, já era tarde. Sempre achei que vocês deveriam seguir os meus passos e achava inconcebível que não quisessem. Ai foi o meu infortúnio. Meu filho mais velho acabou me odiando e abandonando e o mais novo tornou-se o espelho dos meus defeitos. E o culpado de tudo isso fui eu, e só descobri isso depois de velho. Nunca disse o quanto me orgulhava de saber das suas conquistas, nunca demonstrei o quanto os amava, nunca nem participei de nenhum momento importante da vida de vocês. Enfim, nunca disse isso, pois tudo já estava feito. Eu havia criado esta guerra entre nós e não havia mais o que fazer. Tinha vergonha de ir pedir desculpas aos dois, e não queria ouvir Gabriel dizer tudo que ele tem a dizer sobre mim. Eu morreria ali mesmo. Concluindo, quero dizer-lhes que tentem se entender com seus defeitos, afinal são irmãos e devem compartilhar desse laço que os une. Sinto muito orgulho pelos dois. Pelo espetacular administrador que Junior se tornou, e pelo incrível Jornalista que Gabriel veio a ser. Amo vocês e me perdoem por tudo.
Maximiliano Ruschel.”
Neste momento Junior não conseguia conter as lágrimas que escorriam e pingavam no paletó acinzentado. Gabriel seguia com a frieza herdada pelo pai, olhava para o irmão e para o advogado com um olhar sério e respeitoso, impassível. Montana continuou:
- Garotos é isso. Querem alguma informação? Fora isso cada um pode pegar a sua caixa.
Gabriel sem dizer nenhuma palavra, como rosto completamente sério, agarrou a caixa com as duas mãos, acenou com a cabeça para o advogado e saiu. Junior ficou sentado com um lenço no rosto. Gabriel desceu de elevador saiu do prédio e entrou em seu carro. Colocou a caixa no banco do carona, mas não resistiu e colocou-a de volta em seu colo e abriu. Era uma caixa de madeira do tamanho de uma caixa de sapatos com uma etiqueta com o nome de Gabriel em cima. Quando abriu a caixa ficou chocado. Estava cheia de fotos das formaturas do colégio e da faculdade, do casamento de quando ele era bebê e fotos da família. Abaixo das fotos estavam recortes de jornal. Eram todas as matérias, reportagens e artigos escritos por Gabriel. Gabriel fechou a caixa, colocou a mão sobre a boca e ficou alguns minutos olhando para o nada e pensando. Colocou a caixa de volta no banco do carona e saiu com o carro dali. Seguiu para o sul em direção do cemitério.
Gabriel estacionou o carro e pegou uma garrafa de uísque no porta luvas. Acendeu um cigarro e foi até o túmulo do pai. Ficou alguns minutos em pé em frente do túmulo. Seu telefone tocou, era Patrícia:
- Sim minha chefe amada.
- Oi Biel onde está? Está uma confusão aqui. O prefeito se pronunciou sobre o caso e declarou guerra ao, segundo ele disse, “jornalismo sensacionalista oportunista deste Gabriel Ruschel”. Você tem que dar uma resposta a ele ou marcar uma entrevista para ver o que acontece.
- Agora a coisa vai ficar boa, chego aí em meia hora. – e desligou.
Gabriel tomou um gole da garrafa, derramou um pouco sobre o túmulo e deu uma forte tragada no cigarro. Falou para o nada:
- É meu pai, a coisa vai ficar feia – deu uma olhada para o túmulo da mãe ao lado – e o pior é que nunca bebemos alguma coisa juntos. Tenho a sensação de que nos veremos em breve.
Ele tomou mais um gole e saiu andando em direção ao túmulo de sua falecida esposa. Ele parou, beijou mão e encostou-a no nome escrito na lápide e foi embora.
Chegou ao jornal e foi almoçar, pois já havia passado do meio-dia. No momento que retornou seu telefone tocou. Atendeu e antes de falar uma voz conhecida lhe disse:
- Jornalista Gabriel Ruschel? Aqui é o prefeito Antonio Martins.
- Olá prefeito que prazer falar com o senhor – falou em tom irônico.
- Por favor Ruschel, não vamos ser hipócritas. Só quero lhe dizer que você devia ter ficado na capital. Com aquela matéria você entrou em um briga que não poderá ganhar e eu vou fazer tudo ao meu alcance para destruir essa sua carreira infeliz. Manteremos contato. – Gabriel ouviu telefone desligar do outro lado, baixou o seu no gancho sentou-se na cadeira e disse:
- É Gabriel, a merda vai ser grande.